Que relação existe entre o lamentável e cotidiano
fato de pessoas revirando as lixeiras das nossas portas e o instituto da
licitação? Muito mais que matéria de natureza jurídica, licitação é assunto que
diz respeito a cidadania. E diante de tanta corrupção praticada nos
procedimentos licitatórios, impõe-se discutir amplamente a imprescindível
aplicação do princípio constitucional da moralidade e outros que impeçam a
utilização desvirtuada de tão importante elemento vertido do Estado Democrático
de Direito.
Imperioso é propugnar pela urgente conscientização
de todos os que participam desse mecanismo pré-contratual na Administração
Pública, objetivando tornar concreto o propósito do legislador constituinte, e
também do ordinário, de fazer da Licitação um instrumento de segurança para os
administrados - que ofertam seus produtos, serviços e mão-de-obra - e para o
próprio Poder Público que os contrata.
Como se sabe, licitação é o procedimento
administrativo utilizado pela Administração Pública para escolher a proposta
mais vantajosa com vistas ao contrato que esta quer celebrar. Logicamente,
primeiro faz-se a licitação, depois firma-se o contrato.
O procedimento licitatório, via de regra, é
conduzido por uma Comissão de Licitação (permanente ou especial), integrada por
três membros titulares e seus suplentes, que, após obter a competente
autorização, dá início ao certame (como também é chamado), convocando os
interessados, através da carta-convite, ou do edital, a apresentarem suas
propostas, e daí por diante realizando as sessões, públicas por determinação
legal, com a lavratura de ata, procedendo às fases de habilitação, julgamento e
classificação das propostas, com poder de "vida e de morte" sobre os
licitantes.
É muito comum a formação de Comissões por
servidores despreparados para atuar nas licitações. É absurdo, mas é verdade
que a grande maioria não detém conhecimento técnico suficiente para conduzir
esse importante processo que vai decidir, afinal, o contrato que o Poder
Público haverá de firmar com o particular, muitas vezes envolvendo expressivo
volume de recursos financeiros.
A rigor, observa-se usual desinteresse da
Administração Pública de aprimorar a condição técnica daqueles servidores,
reclamando, esse comportamento administrativo, a assunção de nova diretriz que
transforme o caminho desprestigiado em prioridade necessária e útil.
Deve também residir na lista de preocupações da
Administração o suporte estrutural suficiente para que as Comissões que
realizam grande número de licitações possam desenvolver o serviço a contento,
sem atropelos nem vicissitudes materiais e funcionais.
Dessa conjuntura deficiente resulta, por exemplo, o
cerceamento de direitos dos licitantes, freqüentemente impedidos de registrar
em ata os seus protestos, tendo que ir ao Judiciário para fazerem valer
direitos pacificamente reconhecidos pela legislação, em sede doutrinária e
jurisprudencial.
A Lei nacional de Licitações nº 8.666/93, adotada
generalizadamente no Brasil, nos três níveis da Federação, contém princípios
que asseguram aos cidadãos e aos licitantes o direito público subjetivo de
verem a licitação transcorrer dentro da legalidade, exercitando as suas
prerrogativas recursais, seus direitos de oportuna e regular interferência no
procedimento etc. etc.
Mas, lamentavelmente, os licitantes sérios ficam
segregados, sendo-lhes negada, as mais das vezes, a simples e obrigatória
emissão de certidão, sem contar com a ausente ou serôdia publicação dos atos,
esta considerada pela Lei 8.429/92 como ato de improbidade administrativa
atentatório aos princípios da Administração Pública (art.11, IV). Os que já
experimentaram esse desgastante processo podem avaliar o fato.
A situação mais grave, todavia, é aquela em que o
licitante se depara com uma Comissão ímproba, deliberadamente articulada para
lesar os fins da licitação. São servidores, acobertados por autoridades
hierarquicamente superiores, que se colocam a serviço da fraude, em conluio com
determinadas licitantes e com as quais dividem os lucros do engodo.
Não temem
punição, mesmo sabendo que a Lei 8.666/93 tipifica como crime o ato de frustrar
o caráter competitivo do procedimento licitatório, levado pelo intuito de obter
para si ou para outrem vantagem decorrente do objeto da licitação, assinalando,
a norma, para esses casos, a pena de detenção de dois a quatro anos e multa
(art.90).
É preciso acabar com prática desse gênero. É
preciso que as licitantes, que se sentirem atingidas pela ação criminosa das
Comissões ou de qualquer autoridade que esteja envolvida na prática do ato, as
enfrentem, sem qualquer tipo de receio. Preparem-se, pois, tecnicamente para se
municiar contra inadmissíveis e rechaçáveis condutas que só prejudicam a
sociedade; que acabam por propiciar a contratação de empresas desqualificadas
para prestar o serviço, ou que se prestam a manipulação, celebrando aditivos e mais
aditivos contratuais, que multiplicam o valor inicialmente ajustado, sob
fundamentos ilícitos, isto sem falar nas propostas classificadas com preços
superfaturados.
Os prejudicados, antes de temerem represálias das
inescrupulosas autoridades e membros de Comissões, provoquem o Ministério
Público, adotem as medidas necessárias a inibir tão repugnantes posturas,
inimigas do progresso social, enodoadoras do serviço público.
É assim que poderemos redesenhar esse modelo
execrável averso à ética, aos princípios da boa administração, à moralidade e
probidade administrativas.
De tudo isso exsurge que, enquanto essas práticas
nefastas se dão desassombradamente nas repartições públicas, no desenrolar das
licitações desvirtuadas, os excluídos da nossa sociedade reviram as lixeiras
das nossas portas, porque o benefício social que deveria a eles ser dirigido
escoa para os bolsos dos que compartilham entre si os frutos da fraude
usurpadora da regularidade dos contratos, num tempo de tantos reclamos por
menos miséria, por menos pobreza.